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terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Prosa santiaguense

-Depois se estende outra vez. Lentissimamente, está ouvindo? É agora, daqui a pouco, quando entra o acordeon. Acordeon não. Bandoneón, é assim que eles dizem lá. Presta atenção. Você percebeu. O sax é o soco.
Dobrou o próprio punho e fez um movimento brusco no ar, como se esmurrasse a si mesmo. Com força, no ventre. Curvou o corpo inteiro, a cara torcida num simulacro de dor sem fôlego. Depois começou a distender devagar a coluna. De onde estava, no canto oposto da sala, o outro tinha a impressão de que ele alongava uma por uma as vértebras, até atingir a altura do pescoço que se erguia, ao abrir os braços feito uma criança com sono espriguiçando-se, pela manhã. Então voltou o rosto e continuou:
-Quando entra o bandoneón tudo se abre – estendeu o braço à frente, parecia querer segurar algo no ar. – Percebeu? Por alguns momentos, apenas alguns momentos, é como se houvesse assim uma espécie de esperança, de possibilidade de esperança. Seja o que for, você está quase alcançando. O teu braço está tão estendido que essa parte que junta com o corpo parece que vai se rasgar. E as pontas dos dedos podem sentir assim quase como. Um formigamento, uma dormência. A vibração dessa coisa que está lá, por enquanto ainda longe deles, prestes a ser tocada.
Ele alongou ainda mais o braço. O tronco acompanhava, num esforço tão grande e lento que precisou tirar uma das pernas do chão. Estendeu-a no ar, equilibrando-se a principio precário sobre a outra, depois mais e mais seguro, enquanto o braço estendido, o tronco alongado e a perna suspensa formavam uma linha quase perfeitamente horizontal. O rosto agora tinha uma expressão de prazer. Ou de expectativa de prazer.
À beira da alegria, o rosto.

Do livro O Triângulo das Águas do santiaguense Caio Fernando Abreu

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