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sábado, 13 de setembro de 2008

Homenagem a um santiaguenese universal

Caio Fernando Abreu nasceu em Santiago do Boqueirão, Rio Grande do Sul em 1948 .
Ingressou em 1967 no curso de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que abandonou para dedicar-se ao jornalismo.
Como jornalista, trabalhou em alguns dos principais jornais e revistas do Brasil, como Veja, Manchete, Correio do Povo, Zero Hora, Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, onde publicou crônicas entre 1986 e 1995.
Vivendo entre Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo, com alguns períodos no exterior, o escritor recebeu vários prêmios, entre eles o Jabuti pelo romance Triângulo das Águas.
Seu livro de contos Morangos Mofados (1982) marcou uma geração ao ser lançado na coleção Cantadas Literárias, da Editora Brasiliense, tornando-se um dos maiores sucessos editoriais da década de 1980.
Vários de seus livros estão traduzidos na Alemanha, França, Inglaterra, Itália e Holanda. Dono de uma escrita marcada pelo tom confessional , construiu sua obra através de personagens urbanos, inquietos existencialmente e fez da literatura um porto onde atracou com contos, romances, dramaturgia, poesia e jornalismo.
Com uma prosa ao mesmo tempo delicada e agressiva, e ainda extremamente atual, muitas vezes deixa-se transbordar de emoção com a lembrança de uma amizade, de uma música ou poema, de um lugar. Na tentativa de elaborar ou encontrar suas respostas, dá-las ou mesmo exigi-las de quem o lê, experimentou de tudo: drogas, viagens, relacionamentos, tudo em troca de um viver ao mesmo tempo intenso e excessivo. Por seus personagens, ora alienados, ora confusos, ora lúcidos, percebe-se toda a topografia emocional de uma geração . Em suas crônicas, publicadas com maior regularidade nos últimos anos de vida, a morte e a descoberta das coisas simples da vida são assuntos recorrentes. Em setembro de 1994, declarou publicamente em sua crônica semanal que era portador do vírus HIV.
Morreu aos 47 anos de complicações causadas pelo vírus.
  • Bibliografia:
    Inventário do Irremediável, contos. Prêmio Fernando Chinaglia da UBE (União Brasileira de Escritores); Rio Grande do Sul: Movimento, 1970; 2ª ed. Sulina, 1995 (com o título alterado para Inventário do Ir-remediável).
  • Limite Branco, romance. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1971; 2ª ed. Salamandra, 1984; São Paulo: 3ª ed., Siciliano, 1992.- O Ovo Apunhalado, contos. Rio Grande do Sul: Globo, 1975; Rio de Janeiro: 2ª edição, Salamandra, 1984; São Paulo: 3ª edição, Siciliano, 1992.
  • Pedras de Calcutá, contos. São Paulo: Alfa-Omega, 1977; 2 ed., Cia. das Letras, 1995.
  • Morangos Mofados, contos. São Paulo: Brasiliense, 1982; 9 ed. Cia. das Letras, 1995. Reeditado pela Agir - Rio, 2005.
  • Triângulo das Águas, novelas. Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro para melhor livro de contos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983; São Paulo: 2 edição Siciliano, 1993.
  • As Frangas, novela infanto-juvenil. Medalha Altamente Recomendável Fundação Nacional do Livro Infanto-Juvenil. Rio de Janeiro: Globo, 1988.
  • Os Dragões não Conhecem o Paraíso, contos. Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro para melhor livro de contos. São Paulo: Cia. das Letras, 1988.
  • A Maldição do Vale Negro, peça teatral. Prêmio Molière de Air France para dramaturgia nacional. Rio Grande do Sul: IEL/RS (Instituto Estadual do Livro), 1988.
  • Onde Andará Dulce Veiga?, romance. Prêmio APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) para romance. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.
  • Bien Loin de Marienbad, novela. Paris, França Arcane 17, 1994.
  • Ovelhas Negras, contos. Rio Grande do Sul: 2 ed. Sulina, 1995.- Mel & Girassóis (Antologia)- Estranhos Estrangeiros, contos. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.- Teatro Completo, 1997


Teatro:
- O Homem e a Mancha

- Zona Contaminada

Abaixo alguns fragmentos da obra:
Texto 1
Que coisas são essas que me dizes sem dizer, escondidas atrás do que realmente quer dizer? Tenho me confundido na tentativa de te decifrar, todos os dias. Mas confuso, perdido, sozinho, minha única certeza é que de cada vez aumenta ainda mais minha necessidade de ti. Torna-se desesperada, urgente. Eu já não sei o que faço. Não sinto nenhuma alegria além de ti.Como pude cair assim nesse fundo poço? Quando foi que me desequilibrei? Não quero me afogar: Quero beber tua água. Não te negues, minha sede é clara.
( Extraído do livro Caio Fernando Abreu- Caio 3D, O Essencial da Década de 1980, p.186)
Texto 2:
Alento
Quando nada mais houver,eu me erguerei cantando,saudando a vida com meu corpo de cavalo jovem.E numa louca corrida entregarei meu ser ao ser do Tempo e a minha voz à doce voz do vento.
Texto 3:
Triângulo em Cravo e Flauta DoceEla disse que não tinha certeza de nada, que podia mesmo ser uma alu­cinação, um pesadelo, uma projeção subconsciente ou qualquer outra coisa assim. Enumerou suposições, os olhos preocupados evitando os meus, e disse também que preferia não contar, que sabia que eu ficaria preocupado e iria falar com ele, que talvez fosse agressivo e negasse tudo, ainda que o que ela havia visto e escutado fosse verdade.Acrescentou que apesar de tudo nada tinha a ver com a vida dele, nem com a minha, e falou ainda em voz baixa que talvez também não tivesse nada a ver com sua própria vida. Foi então que seus olhos se apertaram um pouco e por um momento pareceram cheios de lágrimas. Achei que fosse ilusão minha e não falei nada, até que ela começou a roer as unhas e afundou a cabeça na mesa.Afastei o copo e a garrafa de vinho para tocar sua cabeça, mas inter­rompi o gesto em meio e fiquei com a mão suspensa sobre seus cabelos. Ela pareceu perceber, pois ergueu os olhos assustada, sem fazer nenhum outro movimento. Cheguei a pensar então em não insistir mais, disse para mim mesmo repetidas vezes que talvez fosse melhor para nós três que eu saísse imediatamente dali para não voltar nunca mais. Mas qualquer coisa me obri­gava a permanecer.Esperei sem dizer nada até que ela recomeçasse a falar. Depois de algum tempo olhando as mãos, disse que meu irmão não dormia há várias semanas, passava a noite inteira fumando, levantando da cama para ir à cozinha, ao banheiro, ou então à sala, onde colocava sempre aquela mesma música medie­val em cravo e flauta doce, enquanto escrevia até de madrugada. Ela não che­gou a dizer - mas percebi que não suportava mais aquela melodia nem aque­les cigarros nem o barulho da máquina nem aquele escuro roendo o corpo e a mente dele. Andava magro, disse, nervoso, tinha olheiras fundas, às vezes ficava muito pálido e apoiava-se no primeiro objeto à vista como se fosse cair. Fiquei ouvindo, mas soube que não era só isso. E não insisti, apenas continuei olhando para ela enquanto falava.Então ela disse devagar que estava grávida, e que contara a ele. Passou sem sentir os dedos de unhas roídas sobre o ventre ainda raso, depois disse que ele jurara matá-la se não tirasse a criança.Perguntei se essa seria a causa do desespero dele, daquela música, das noites em branco, dos cigarros, das tonturas. Evitando me encarar, ela disse apressada que não, mas pouco depois tocou no copo cheio de vinho e disse que sim, pelo menos, acrescentou, pelo menos antes de saber aquilo ele andava mais calmo. Ficou calada de repente para depois dizer com esforço que sim, que tinha certeza que sim, que compreendia que fosse dessa maneira, que ela própria às vezes se horrorizava e pensava no ponto a que tinha chegado. O ponto terrível, ela repetiu, terrível.Ela falou muitas coisas, e fiquei lembrando das suas tranças, antiga­mente, das suas meias sempre escorregando pelas pernas finas, da mania de subir nas árvores mais altas e ficar lá em cima até que alguém a obrigasse a des­cer para jantar ou tomar banho. Tinha sempre os cabelos finos caídos sobre os olhos numa franja rala, um ar obstinado de animal selvagem, as unhas roídas até a carne. E os olhos devorados por qualquer coisa incompreensível. Des­pertei com o toque de seus dedos no meu pulso, dizendo que não suportava mais. Perguntei se queria que eu falasse com ele, mas pareceu não ouvir. Disse que não suportava olhar para os braços dele e ver as manchas roxas endureci­das sobre as veias e saber da droga escorrendo por dentro, pelo sangue, enor­mizando as pupilas, desnudando os ossos, empalidecendo a pele.Perguntei lento se tinha certeza, ela disse que sim, encontrava sempre seringas e ampolas e pedaços de borracha jogados pela casa, e tinha medo, perto dele tudo parecia fazer parte de um pesadelo, ela disse.Ficou repetindo tudo isso enquanto eu pensava nele, brincando sozi­nho, voltado sempre para o sombrio, seus livros no porão, sua criação de ara­nhas, os mesmos cabelos finos dela, o mesmo ar obstinado, as suas vozes rou­cas, o seu medo.De repente ela disse que talvez fosse melhor eu não falar nada, ele achava que ninguém sabia, talvez se voltasse contra ela, tinha medo.

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